O ator Wagner Moura encontra o ator Saulo Humberto, que interpreta pela primeira vez o cristo na via-sacra de planaltina: inspiração para escrever um conto de reencontro

Eu estava indo para o Projac gravar Carga Pesada, quando olhei para o piso do lado do carona e vi que ali tinha nascido um cogumelo de aproximadamente 10 centímetros. Parei na concessionária e mostrei o piso do carro ao homem que me atendeu. Os mecânicos ficaram espantados. Ninguém tinha visto coisa semelhante. O carro ia ter que dormir lá. Ainda havia meia hora até a gravação. Me sentei no meio-fio e pensei em o quanto era difícil parar de fumar. Foi quando o celular tocou e San, com voz seca, disse que o João tinha me ligado. ‘‘Tem certeza?’’, perguntei. ‘‘É melhor você vir para casa’’ , ela respondeu. ‘‘Ele deixou um recado para você na secretária’’, completou. ‘‘Quando eu chegar escuto. Fica calma. Te amo.’’ Desliguei. Estava dentro do táxi, quando a produção me ligou cancelando a gravação por causa da chuva. Agora eu só gravaria de novo na semana seguinte. Pedi ao motorista para fazer o retorno e voltei para casa.

Até Botafogo, na bandeira 2, a corrida dava uns R$ 40,00, mas eu só fui começar a pensar no João lá para os R$ 13,50. Ele era para mim o que os mais românticos chamam de melhor amigo. Nossos pais serviram juntos na Aeronáutica; sargentos. Eu e João Batista vivemos a mesma infância. Entramos para o teatro juntos e ele era, sem dúvida, o maior talento que eu tinha visto na vida. Tudo que ele fazia pulsava, havia verdade, havia emoção.

Ele era a coisa mais impressionante que eu tinha visto num palco depois de Maria Bethânia. Eu o admirava. Eu
o invejava até. Ele era mais bonito, mais talentoso, mais bondoso e mais inteligente do que eu. E havia também o imperdoável: ele não queria ser ator. Era demais! Eu, que não tinha um terço do seu talento, esforçava-me para estudar e fazer testes e ele não estava nem aí. Nunca ia a uma audição e recusava convites que eu daria tudo para receber. O que ele curtia era ir dar aula de teatro em comunidade carente de Brotas. Dizia que cada ator tem a Hollywood que almeja. Eu não entendia o que ele queria dizer.

Era ator conhecido em Salvador quando resolveu ir morar em aldeia hippie no Vale do Capão, Chapada Diamantina. Lá eles plantavam o que comiam e o que fumavam. Nos falávamos por telefone, ou quando eu ia passar uns dias com ele na comunidade. Eram poucas vezes, mas continuávamos sintonizados. Os melhores amigos. E ele era muito feliz lá, e era isso que importava. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, só que eu não podia deixar de achar um desperdício ver aquele cometa de luz vivendo de vender artesanato, trabalhar na lavoura e dar aula na escolinha rural.

Paguei ao taxista mal-humorado e, só então, em frente do meu prédio, comecei a ficar apreensivo com o recado que João tinha me deixado. Depois de tudo que aconteceu! Quase seis anos sem nos falarmos. San também tinha seus motivos para o nervosismo. Ela sabia o quanto ele era importante para mim e nunca se acostumou com a idéia de ter sido a causa da nossa separação. Quando era fotógrafa de um jornal baiano, ela foi fazer uma matéria sobre comunidades alternativas. Conheceu João. Ele se apaixonou pela primeira vez na vida, mas não conseguiu fazer com que ela soubesse; para essas coisas ele era tímido. Eu deveria ter sido o cupido. Foi para mim que ele ligou pedindo que eu a achasse em Salvador e contasse que tinha um homem lindo na Chapada que a amava. E eu a procurei. E casei com ela. João sumiu e eu nunca mais o vi. Faz seis anos.
Sentado no chuveiro

E o recado na secretária dizia exatamente assim: ‘‘Wagner, estou em Planaltina. Venha me ver imediatamente. Só você pode me ajudar.’’ Perguntei a Sandra como ela sabia que era a voz de João. Ela não me respondeu e eu sabia que não precisava. Ele não precisava se identificar. Aquilo era para homens comuns.

Fui tomar um banho e decidi ignorar o telefonema. Ele devia estar era muito doido em algum lugar do Planalto Central. Eu não ia me despencar do Rio de Janeiro até Brasília só para acertar as contas com o passado. Eu, aliás, não devia nada a ninguém. Ele que se fodesse. Ele foi quem fugiu. Maluco. Não me deu chance de conversar. Sumiu no mundo e me deixou a culpa. Agora queria me atormentar como uma porra de um fantasma. Que se foda! Fui homem para assumir o meu amor, mesmo sabendo que era o amor do meu irmão. Eu me recusei a me sacrificar, eu o procurei para contar tudo e só obtive em troca um olhar de misericórdia como se eu fosse um verme diante do melhor homem do mundo. Eu não fui digno de nem uma palavra. Naquela noite ele só me olhou, virou as costas e sumiu do mapa para só agora me deixar um recado (ainda ignoro como conseguiu meu telefone), dizendo que estava em Planaltina e que eu precisava vê-lo imediatamente.

Quem ele pensava que era? Seis anos se passaram! Nem moro mais em Salvador! Será que ele assistiu ao Deus é Brasileiro? Será que ele sabia que eu e San continuávamos casados e felizes? Será que ele veio me cobrar o que ele achava ser dele por direito? Ou será que era só o melhor e mais luminoso amigo que eu tive precisando de mim? ‘‘Só você pode me ajudar’’, ele dizia. Estava sentado embaixo do chuveiro, como gosto de fazer, quando San abriu a porta e disse: ‘‘Eu acho que você tem que ir lá’’.

O táxi para o Galeão, na bandeira 1, custou R$ 22,00. O meu carro, livre dos cogumelos, só poderia ser entregue na sexta. O vôo da Vasp atrasou três longas horas. Eu ainda não sabia onde iria ficar nem fazia a menor idéia de como encontrar João na cidade de Planaltina, que ficava muito perto de Brasília.

Duas Planaltinas

Quando cheguei ao aeroporto da Capital Federal me senti um completo idiota. Depois de alguns minutos parado no saguão, tive a idéia de ligar para Sérgio Maggio. Serginho fora meu colega na Faculdade de Comunicação da UFBa e agora trabalhava no Correio Braziliense. Havíamos nos falado por telefone há alguns meses, quando ele fez uma entrevista comigo para o jornal. É estranho dar entrevista para os amigos. Liguei para Serginho e combinamos de almoçar num shopping. Expliquei que precisava encontrar um amigo em Planaltina, que provavelmente deveria estar em alguma comunidade hippie. Sérgio me disse então que havia algumas em Alto Paraíso, a mais ou menos duas horas de Brasília, mas que em Planaltina ele nunca tinha ouvido falar de comunidade nenhuma. ‘‘A não ser...’’, disse ele, ‘‘...que seja em Planaltina de Goiás.’’ Mais essa agora.

Enquanto pagávamos a conta, Sérgio me contou que o Planalto Central era para alguns, quer pela localização, quer pela concentração de cristais, o grande centro da espiritualidade mundial. Por essa razão havia tantas seitas, religiosos e esotéricos na região. Por coincidência, ele estava indo naquele momento fazer uma matéria num lugar chamado Vale do Amanhecer, onde uma das seitas mais conhecidas realizava seus rituais calcados no espiritismo. Os integrantes trajavam roupas medievais e se reuniam em grande complexo encravado num vale. Serginho me indicou o hotel Naoum e me deu uma carona até lá. Na porta, pedi que me esperasse um pouco, dei entrada na recepção, deixei minhas coisas no quarto e fui com ele para o Vale do Amanhecer.

 No caminho apanhamos Jefferson, o fotógrafo, e seguimos pelo cerrado enquanto eu me perguntava o que tinha me levado a, já na porta do hotel, tomar a brusca decisão de ir para aquele lugar. Talvez fosse porque eu não tivesse a menor idéia de como encontrar João ou porque aquela situação estivesse tão absurda que acompanhar os dois ao Vale do Amanhecer não era tão estranho. Jefferson se queixava o tempo todo e aquilo começou a me encher o saco. Dizia que estava com dor de cabeça e comecei a perceber que ele estava era com medo. O Gol de Sérgio parou em frente ao Vale.
Jefferson Rudy

Isqueiro ou batom

Asensação era a de estar na corte do Rei Arthur. Nas paredes, imagens que iam de caboclos a figuras indianas e, nas galerias, vários médiuns incorporados, devidamente paramentados, davam conta de seus serviços. Era como se você, por alguns momentos, voltasse à Roma Antiga, só que dominada por uma crença mística única. Sérgio entrevistava um doutrinador e eu só pensava o quão louco era aquele lugar. Então, pela primeira vez, senti incontrolável e genuína vontade de encontrar João. Eu tinha passado seis anos tentando dizer para mim mesmo que estava tudo bem, que nada de mais tinha acontecido, que a vida era assim mesmo, mas eu sabia que de normal aquilo não tinha nada. Não era normal um homem sumir assim sem deixar vestígios. A polícia o deu como desaparecido, já que um cadáver nunca foi encontrado e eu tive que conviver com essa dor, semelhante à de parentes de desaparecidos da ditadura, até hoje. Mas ali estava a oportunidade de me libertar! Eu nunca deixei de encarar as coisas de frente e era por isso que eu estava ali. Me senti bem. João tinha me ligado, eu não sabia o que ele queria, mas naquele momento tinha certeza de que não estava ali em vão e que encontrá-lo, acontecesse o que acontecesse, era a oportunidade que o universo me dava para ingressar em novo momento da minha vida. Sem culpa, sem noites de insônia e sem pesadelos.

Fui para fora da galeria e percebi que Jefferson e Serginho também tinham saído. Juntos, então, vimos uma cena que poderia entrar em qualquer filme de David Lynch. Uma das doutrinadoras, visivelmente perturbada, pôs um cigarro na boca e sacou do bolso um batom. Durante aproximadamente cinco minutos, essa mulher tentou acender o cigarro com o batom, usando-o como se fosse um isqueiro. No começo, pensei que ela estivesse distraída e fosse perceber o engano, mas, ao contrário, ela tirava a tampa do batom, levantava e abaixava o objeto de tinta rubra e parecia, sinceramente, não entender por que o isqueiro não funcionava. As mãos da mulher começaram a ficar tingidas de vermelho conferindo à cena dramaticidade indescritível. Jefferson, mesmo apavorado, conseguiu fazer muitas fotos, mas ele não esperava que ela fizesse o que fez. Ao fim dos minutos de esquizofrenia dramática, ela parou, aproximou-se de mim e me disse ao pé-do-ouvido: ‘‘Procure por Jesus que você o encontrará amanhã’’, e entrou. Serginho, que acompanhava a cena extasiado, perguntou ao doutrinador por que ela tentava fazer aquilo com o batom. O homem respondeu: ‘‘Aquilo não era um batom, era um isqueiro’’. Foi a deixa para Jefferson juntar seu material e partir em direção ao carro. Agradecemos, eu e Sérgio, e fomos embora.

João de Santo Cristo

Serginho me convidou para jantar na Academia de Tênis, mas me despedi dele e fui para o hotel. Sentia que aquela experiência, dali em diante, tinha que ser vivida só por mim. Fiquei em dúvida se a mulher do batom quis dizer que amanhã eu encontraria Jesus ou se ela estava falando de João. No quarto, adormeci rapidamente pensando no que a mulher tinha me dito. Sonhei com um padre italiano que me banhava de leite e mel ao som de Faroeste Caboclo. O padre tentava acompanhar a música em italiano e João aparecia ao lado dele e dizia que, a partir daquele momento, gostaria de ser chamado de João de Santo Cristo e não mais de João Batista. Acordei assustado e o relógio marcava 21h. Eu precisava tomar um ar e algumas cervejas.

Me lembrei que, quando estive em Brasília com o espetáculo Abismo de Rosas, costumava beber num bar muito popular chamado Beirute. Não era necessário o endereço, qualquer taxista sabia onde ficava. Era uma quarta-feira e o Beirute não estava 100% lotado. Sentei e pedi meu chope. Na mesa ao lado, meninada animada cantava música do Capital Inicial. O Capital, na minha opinião, é a única banda dos anos 80 que voltou melhor do que antes. João adorava o rock de Brasília, a gente ficava horas discutindo o que Tempo Perdido queria dizer. Ele dizia que minha leitura da música era muito óbvia e que para entender a letra eu teria que ler Proust. Duas meninas lindas se aproximaram e perguntaram se poderiam sentar. Disseram que tinham acabado de ver Carandiru e perguntaram se eu não gostaria de ir a uma festa com elas.

A festa era numa casa que parecia um teatro abandonado e não se via um palmo à frente do nariz. Era uma festa cheia daquelas pessoas de cabelos azuis com um mínimo de seis piercings no rosto. Me separei por alguns instantes das meninas e descobri que o point da festa era uma espécie de camarim. Todo mundo se pegando num sensacional ritual dionisíaco; o local não poderia ser mais apropriado. Dei meia-volta e vi as duas meninas se beijando e me olhando, sedutoras. Pedi um cigarro à drag queen mais próxima e voltei a fumar depois de três meses de abstinência. O cigarro me deu coragem para me abster de prazeres mais interessantes, me despedi das meninas e fui embora. No táxi, San me ligou para saber se estava tudo bem. Ela estava meio bêbada no aniversário de Isadora, uma amiga nossa. Disse que estava saindo de uma festa que eu não tinha mais idade para freqüentar e voltava para o hotel. Contei também sobre o cigarro e sobre ainda não ter encontrado João, mas disse que algo me levava a crer que no dia seguinte eu veria Jesus. Ela não entendeu e eu falei para deixar pra lá. Ela disse que me amava muito e que estava orgulhosa e eu desliguei o telefone contente por não ter comido as meninas da festa.

Enigma em inglês

“Whoever trusts Jesus doesn’t waste time.’’ No meu sonho, o padre italiano agora estava em show de calouros e tentava virar garrafa de vinho Dom Bosco de uma só vez. A multidão o incentivava gritando ‘‘vai, vai, vai’’. Atrás dele, João vestido como uma espécie de Sílvio Santos e, atrás de João, um enorme cogumelo igual ao nascido no chão do meu carro, decorado com motivos natalinos, com um luminoso em que se lia ‘‘Whoever trusts Jesus doesn’t waste time.’’

Acordei pelas duas da tarde e resolvi escrever a frase no mapa de Brasília que conseguira na recepção, para não esquecer. Julguei o sonho importante. O plano era almoçar no restaurante do hotel e pegar alguma condução até Planaltina, ou Planaltina de Goiás, àquela altura tanto fazia. Eu me sentia bem e estava determinado a procurar João de Santo Cristo por todo final de semana e ainda era quinta-feira. O garçom, timidamente, perguntou se eu também gostaria de ir ao Templo da LBV. ‘‘Não entendi’’, respondi. ‘‘É um lugar que eu costumo freqüentar. Me desculpe, mas não pude deixar de reparar na frase escrita no seu mapa.’’ A frase, assim mesmo em inglês, ficava na entrada do Templo da Legião da Boa Vontade, na Asa Sul. Resolvi ir até lá.

 Era enorme vão, no teto tinha pedra de cristal pesando 21 quilos e, no chão, espiral que simbolizava a evolução do homem e que ia dar em centro que ficava exatamente embaixo do cristal. As pessoas percorriam esse caminho ao som de música apocalíptica e de trechos gravados da Bíblia, bebiam um copo d’água e sentavam para meditar com as cabeças recostadas nos bancos. Participei de todo o ritual e, depois de beber a água, me sentei no banco e vi, recostada à minha frente, a cabeça de João Batista de Santo Cristo.

Confissões do Cristo

Toquei de leve seu ombro e ele se virou, me olhou como se tivesse me visto ontem e disse: ‘‘Precisamos conversar’’. Ele não tinha mudado muito, continuava bonito e com a mesma áurea de bondade. Os cabelos e a barba é que tinham crescido um pouco. Saímos juntos do templo sem dizer uma palavra, lá fora a tarde caía e era o entardecer mais lindo do mundo. Ele me disse, sério, porém sereno, que estava muito feliz de me ver ali e que precisava me dizer uma coisa muito importante. ‘‘Vamos até a Ermida’’, ele falou, ‘‘Meu carro está logo ali.’’

O carro era um Fusca 77 e ele vestia uma camisa com a Virgem Maria. No caminho, continuou calado e eu também não tive vontade de dizer nada. O que eu sentia era paz. Talvez aquele momento no Fusca tenha sido o de maior tranqüilidade por que passei na vida. Eu não quis lhe explicar nada, tinha, durante todos esses anos, repassado na cabeça diversas vezes o momento em que nos encontraríamos. Diria que casei com Sandra porque a amava e não considerava justo ter vergonha de sentimento assim. Quando ele me acusasse de Judas, diria que assim que ficamos juntos eu o procurara para falar tudo, mas que ele tinha sido covarde e perverso, fugindo dali e me deixando todos esses anos com uma tonelada no peito. Mas ali eu não queria dizer nada e de alguma forma sentia que ele também não falaria sobre aquilo e que o assunto em questão era outro.

Na Ermida, o sol se punha com uma beleza só de Brasília. Ficamos um pouco mais em silêncio e João me disse: ‘‘Você está mais magro’’. E nós começamos a rir. Depois, ele tomou um ar mais sério e disse que tinha me chamado ali porque precisava se confessar. ‘‘Procure um padre, porra’’, eu disse brincando, mas dessa vez ele não achou graça e falou que morava há seis anos em Planaltina e que lá conheceu grupo de jovens católicos que vinha utilizando o teatro como instrumento de evangelização. Disse que encontrou na fé católica a explicação para muitas de suas questões e que só não virou padre porque não conseguiu não se apaixonar por uma moça com quem vivia em Planaltina e com quem tinha um filho, que naquele mesmo dia completava um ano. No dia seguinte, ele participaria, pele primeira vez no papel de Cristo, da 29ª Via-Sacra, tradicional encenação ao ar livre no Morro da Capelinha.

‘‘Eu não posso ser crucificado sem me confessar antes e tem uma coisa que não posso dizer a nenhum padre, só a você.’’

‘‘Pois então diga.’’

‘‘Eu não sou Jesus, sou um plágio.’’

Nesse momento senti um frio na espinha. Não era possível que ele tivesse perdido a lucidez. Não era possível que ele tivesse passado de vez para o lado de lá.

‘‘Mas João...’’

‘‘Espere Wagner, eu ainda não terminei. Antes que você pense que eu fiquei louco.’’

E me lançou um olhar idêntico ao daquele dia na Chapada Diamantina em que virou as costas e sumiu por seis anos.

‘‘Amanhã quero que você vá me assistir fazendo o Cristo, mas antes preciso que você me escute. A Páscoa neste ano cai no dia 20 de abril. Foi exatamente o dia em que cheguei aqui em Brasília, há seis anos. Eu não tinha onde dormir e me ajeitei próximo a um ponto de ônibus. De madrugada, vi um homem ser queimado por garotos. Não fiz nada para ajudá-lo. Eles não me viram. Até hoje nunca disse a ninguém que fui testemunha do que aconteceu. Conservei para mim esse mal secreto e confesso que me peguei diversas vezes me deleitando com ele. Não sou quem você pensa que eu sou e creio que você é a única pessoa, além de Deus, a quem eu deva confessar o que quer que seja. Eu não lhe devo nada, você não me deve nada. Somos humanos e temos que carregar esse fardo até o fim da vida. Era isso que queria lhe dizer. Espero que você não se importe em voltar sozinho para seu hotel.’’

Antes dele sair, nossos olhares se cruzaram e o dele me sorriu com misericórdia.

Divindade do artista

Sexta-feira da Paixão. Aquilo parecia ser muito maior do que o que se vê na tevê em Nova Jerusalém. Vejo João entrar em cena fazendo Jesus e digo que nunca na minha vida vi uma coisa igual. Todas as milhares de pessoas meio que hipnotizadas pelo poder daquele artista supremo. Na cena da crucificação, o céu, que estava chuvoso, se abriu como num milagre. Creio que nunca nada me impressionará tanto quanto aquele intérprete de Jesus na Paixão de Cristo. Se algum artista algum dia atingiu a perfeição com seu trabalho, ali estava ele, na minha frente. Mozart, Picasso, Fellini, Shakespeare, nada era mais importante do que a simplicidade de João na Via-Sacra de Jesus Cristo. Cada ator tem a Hollywood que almeja. Eu chorava muito porque, enfim, entendia tudo. Sabia que eu não o veria mais.

O avião parou no Santos Dummont por causa de problema na pista do Galeão. Achei ótimo, o táxi daria uns R$ 7,00. Para minha surpresa, sem que eu tivesse combinado e, não sei como ela soube da mudança de aeroportos, San veio me pegar com meu carro, sem cogumelo. Nos beijamos longamente e ela me perguntou se João estava mesmo em Brasília. Respondi que não mais e voltamos para casa. No rádio, Legião.

Rio, madrugada de 13 para 14 de abril de 2003.

Fonte: Correio Web

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