Hamlet contemporâneo


A veia provocativa de Shakespeare

Não precisava ser Shakespeare. O "Capitão Nascimento" por si só seria capaz de lotar o Teatro da Universidade Federal, no Recife. E mostrou isso no último sábado, durante a primeira apresentação de Hamlet: tanto a plateia quanto o balcão estavam lotadíssimos.

O Hamlet de Wagner Moura é incisivo, visceral, mas também carregado de trejeitos exagerados. Foto: Guito Moreto/Divulgação
Eram certamente espectadores de Tropa de elite ou de Paraíso tropical, novela das oito do horário global em que Wagner Moura interpretou Olavo, vilão que fazia par com Bebel (Camila Pitanga). Voltando à arte dos palcos, talvez se uma pesquisa pudesse ser realizada ali, na entrada do teatro, depois de longas filas, provavelmente atestaríamos que Shakespeare não é um dos textos mais comuns aos nossos leitores.

Muitos podem até lembrar do Romeu interpretado por Leonardo Di Caprio ou de algumas frases célebres, repetidas à revelia, como "ser ou não ser, eis a questão", do próprio Hamlet. Sem nos atermos às discussões sobre o porquê de não lermos Shakespeare, a oportunidade de ver um texto dessa magnitude no palco, numa montagem de grandes proporções, executada por um grupo de atores talentosos, é uma experiência deveras válida.

A duração da peça pode até ter deixado que alguns cochilassem um pouco (o espetáculo começou por volta das 20h30 e terminou depois da meia-noite), mas a atuação vigorosa do protagonista Wagner Moura, aliada ao tom de humor concedido ao texto repleto de lições, era capaz de despertar, causar expectativa e até arrancar risadas. Para isso, o original inglês foi traduzido pelo diretor Aderbal Freire Filho e por Wagner, com a ajuda da professora de inglês Barbara Harringtom. Eles atém brincam com a versão original, trazendo um livro de Hamlet para que os atores finjam ler, como se tudo já estivesse mesmo traçado. Mas apesar de trazer uma outra versão, mais moderna, ainda era o Shakespeare que, pelo discurso de seus personagens diz: "seja fiel a si mesmo".

O conselho parece ter sido seguido à risca por Wagner Moura, considerado um dos atores de maior destaque da sua geração, que protagonizou um Hamlet incisivo, visceral, de trejeitos, por vezes, exagerados e até infantis demais. Voltando às referências da televisão, parece que, em alguns momentos, estávamos vendo Tarso, personagem que está sendo interpretado por Bruno Gagliasso em Caminho das Índias, no palco do teatro. Mas nada que comprometesse a loucura e o desejo de vingança próprios ao Hamlet de Moura.

Elenco - Para deleite do público, afora o próprio Wagner, o elenco é composto de artistas talentosos, como Tonico Pereira, que interpreta Claudio, irmão do pai de Hamlet, rei da Dinamarca, que aparece para revelar ter sido envenenado pelo próprio irmão; e Georgiana Góes, a virgem Ofélia, por quem Hamlet se apaixona. Por sinal, um dos belos momentos da peça é quando Georgiana canta e dança no palco, já fruto da loucura que veio com a morte do pai, assassinado por Hamlet. A montagem conta ainda com mais sete atores, entre eles Caio Junqueira e Carla Ribas.

Para acentuar expressões e, numa forma de dialogar com o vídeo, algumas cenas foram transmitidas através de telão, no meio do palco. Wagner, obviamente, estava à vontade com isso - chega a interpretar "primeiro" para a câmera. Mas tudo que ele diz, por vezes aos pulos e berros, como quem profere um discurso banal, está carregado pela veia psicológica, reflexiva e provocativa de Shakespeare. "Nada no mundo é bom ou mau. É o pensamento que diz", mas "pensar nos faz covardes", ao percebermos que "se todo mundo for tratado como merece, ninguém escapa do chicote", numa edição rápida das mensagens que estavam ali. Como se "tomar pé" da realidade fosse, muitas vezes, duro e agoniante demais.

É também em Hamlet que Shakespeare promove uma avaliação sobre o próprio fazer teatral, colocando um grupo de atores no enredo. E aí Wagner dispara: "Muita gente que aparenta ser civilizada raramente entra no teatro". Realmente. Mas que bom que todos ali tiveram a oportunidade de ouvir e assistir à Hamlet - mesmo que numa versão mais latino-americana - e comentar o texto e a atuação, o mínimo que seja, ao final da peça. A noite, que tinha começado com Wagner Moura pedindo para que o público não fotografasse durante o espetáculo, terminou com muitos flashes e um sonoro Parabéns pra você, que lembrou o aniversário de 33 anos do ator, aplaudido de pé (não só ele, mas todo o elenco) pelo público pernambucano.

Fonte: Diário de Pernambuco

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